terça-feira, julho 26, 2005

Renascer

Desembrulhou os documentos antigos com cuidado para não os danificar. O odor bafiento fez-lhe comichão no nariz e a custo suspendeu um espirro que aflorava e se adivinhava sonoro. A sua vida estava aí retratada: a certidão de nascimento, o primeiro bilhete de identidade, o primeiro passaporte (documentos que tinha dado como perdidos junto das autoridades para poder mantê-los na sua posse), o diploma do liceu, o certificado de bacharel, a certidão de casamento, o atestado de óbito da sua mulher, o seu testamento. Tudo guardado dentro de uma capa originariamente azul bébé, mas que agora, com o passar dos anos ostentava uma cor difícil de definir, qualquer coisa próxima de um castanho esverdeado. A sua vida estava ali, toda, reduzida a meia dúzia de documentos que testemunhavam os pontos altos da sua existência. Nada mais havia a dizer sobre uma vida que foi passada a cumprir as regras. Todas. Fossem elas quais fossem. Sempre foi bom aluno, bom filho, bom marido. Pelo menos foi o que sempre tentou e tentava, cumprindo as regras. Recebera sempre palmadinhas nas costas, que não passavam disso mesmo, palmadinhas. Nunca tinha, contudo, experimentado as emoções. Sempre as reprimira. Nunca a sua alma se tinha ausentado para percorrer dimensões diáfanas. Nunca tinha retirado mais de um orgasmo do que a simples contracção mecânica, fisica. Hoje, com mais de sessenta anos, tinha a certeza que quando morresse a sua luz se extinguiria com ele. Mesmo os que o conheceram rapidamente o esqueceriam e nada da sua existência restaria. Concluiu que nada tinha feito de importante na vida. Nada que realmente contasse. Meia dúzia de dias luminosos e milhares de dias cinzentos, perdidos, sem conteúdo, constituíam a sua história. A sua biografia estava contada e contida numa pasta bafienta e sem cor definida.
Sorriu.
Vencendo um último espasmo que lhe tolheu momentaneamente os movimentos, e com a força contida dos sonhos que nunca teve, sentiu a coragem a percorrer-lhe as veias e atirou a pasta à lareira. Continuava a sorrir enquanto tudo o que testemunhava os seus parcos feitos ardia e consumia-se irremediavelmente.
Levantou-se, vestiu o casaco, e sempre acompanhado pelo mesmo sorriso, saiu...para a vida.

segunda-feira, julho 25, 2005

O Proto Candidato

Mário Soares outra vez candidato?...
Mas Portugal é agora a Flórida dos politicos portugueses?

quarta-feira, julho 20, 2005

O sentido das coisas

O sol do fim de tarde reflectia uma cor alaranjada sobre a areia fina da praia. Sentado na esplanada ele debicava uma cerveja, em goles pequenos, quase só para molhar os lábios, como pretendesse que aquele momento se prolongasse indefinidamente. O mar estava calmo e surpreendentemente límpido. O vento estava reduzido a uma simples, mas reconfortante brisa que chegava vinda do Norte. O fim de tarde de um dia de semana, tornava-se ainda mais perfeito pela ausência, quase completa, de pessoas. Não existia qualquer bulício, a não ser o ronronar constante da maré e o sussurro divino do Tom Waits a cantar ao vivo, uma vez que das colunas saía o som do "Nighthawks at the diner". Sentiu-se a viver um daqueles momentos raros na vida, em que todas as peças do puzzle se encaixam momentaneamente e tudo faz sentido, porque simplesmente deixámos de o procurar.
Inevitavelmente a cerveja acabará, o ronronar da maré transformar-se-á num rugido furioso, o Tom Waits será substituído por um qualquer hit descartável, mas a verdade é que sentado na esplanada naquele fim de tarde ele tinha desvendado o mistério: só as coisas simples e belas fazem sentido!

sexta-feira, julho 15, 2005

Mau hálito

Estou cada vez mais farto da oralidade. Farto, já dei, não sei quando voltarei a contribuir!
Hoje em dia oralidade é sinónimo de boçalidade. Fala-se, diz-se, retorque-se, sem sequer se pensar no que se diz. Debitam-se ideias que nunca passaram pela peneira da inteligência. Perdi a paciência. Não discuto mais, acabou. Além disso evito o mau hálito dos outros...

terça-feira, julho 12, 2005

O homem que queria ser o Giulliani

Andava nervoso. Aquele nervoso que não se sabe bem de onde vem, mas que revolve o estômago e causa cãibras nas pernas. Precisava de algo que agitasse a sua vida, que impulsionasse a sua obra, que o tornasse compreendido; enfim, que raios, o seu trabalho não era totalmente compreendido. Mas ele estava satisfeito com a obra realizada. Não sabia bem porquê, mas estava satisfeito. Pelo menos era rigoroso, dizia com os seus botões. Tinha fama disso. Austinado, mas austero, orgulhava-se. Bem, pelo menos até se pôr a brincar com carrinhos, aí a imagem severa diluía-se um pouco.
O que lhe fazia falta, isso sim, era uma qualquer acção heróica, que desvendasse o seu lado genial, obliterado pelo pragmatismo com que fazia questão de dizer que regrava a sua vida. Convenceu-se disso. Mas...onde poderia ele espoletar o herói que existia dentro de si? Onde, nesta cidade alguém precisaria de um super-herói? Onde mostrar a fibra dos verdadeiros líderes, que ele possuia, sem qualquer dúvida. Pelo menos era o que lhe diziam os seus conselheiros!
Eis senão quando, surge a grande oportunidade! Um edifício explode numa das artérias mais emblemáticas da sua cidade. Só pode ser uma resposta dos deuses aos seus anseios. É, indubitavelmente um atentado terrorista! Com mortos e tudo. Nova Iorque será esquecida, é aqui que o terrorismo atacou, aqui na mui nobre e sempre leal cidade que ele dirige. Os obtusos dos bombeiros insistem que terão sido umas botijas de gás. Pobres coitados, nada sabem. Foi o terrorismo, quiça islâmico, etarra, da Irlanda do Norte, não interessa, foi o terrorismo. Querem destruir a cidade, mas ele, qual Rudolph Giulliani, vai estar na linha da frente, sem medo dos terroristas, a mostrar que é um líder, o maior de todos!!!
Calem-me esses bombeiros e a história das botijas de gás. Não se está mesmo a ver que foi um atentado?

sexta-feira, julho 08, 2005

O lado bom da China

quarta-feira, julho 06, 2005

Bolero

António Lobo Antunes
"Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto"

"Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada"

terça-feira, julho 05, 2005

Diferentes ângulos

Para pensarmos o Mundo de forma diferente:
http://www.ad-awards.com/inc/video.swf?id=104

segunda-feira, julho 04, 2005

Uns e outros

Este País às vezes ainda me surpreende. Entre factos e personagens completamente ridículos e outros que nos fazem plantar uma semente de esperança no futuro, os dias têm sucedido nada monótonos.
Comecemos pelo que nos faz alegrar. Duas praias de V. N. Gaia, Miramar e Aguda, onde eu durante mais de 15 anos passei férias sempre excelentes, receberam o galardão “Praia Acessível, Praia para todos”, atribuído pelo Secretariado Nacional para a Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência. Este galardão distingue as praias que se preocupam em criar as condições necessárias para que os deficientes possam realizar o maior número de actividades possível, como por exemplo, os paraplégicos puderem banhar-se no mar. Parabéns pois à Aguda e a Miramar.
Outra notícia agradável nos últimos dias relaciona-se com o facto de a empresa “Douro Azul”, que já domina o turismo fluvial no Douro, ter inaugurado um projecto no Algarve. De facto, esta empresa tem agora um barco com capacidade para 130 pessoas que faz um cruzeiro pela costa algarvia e sobe o rio Guadiana até onde ele é navegável. O objectivo é chegar a Mértola, mas para isso é necessário o desassoreamento do rio, pelo que, por ora queda-se por Alcoutim. Esperemos que a inércia do Estado não impeça este objectivo. Este cruzeiro é genial, uma vez que os turistas saem do barco e visitam o Alentejo raiano, belíssimo e tão esquecido. Por outro lado, embora ainda esteja em fase inicial de lançamento, é já um sucesso, estando já esgotado para os próximos meses, e com mercados não habituais no Algarve: Suíço e Norte-Americano. Parabéns à Douro Azul. Parece que estamos a reconquistar o Algarve.
Dois bons exemplos para um País que se quer a caminho da modernidade e do desenvolvimento.
Vamos agora ao reverso da medalha. O mau exemplo que trago hoje é um caso paradigmático. Demonstra que, em Portugal, a incompetência ainda compensa, e de que maneira. Refiro-me a um gestor que se locomove num Porsche, faz negócios ruinosos, dorme com a concorrência, e não produz mais valias nenhumas para os seus accionistas. Apesar disso, tem uma enorme cobertura mediática, vertendo a sua sapiência em frases sem nexo e muitas vezes contraditórias entre si. O nosso papel enquanto público, supõe tão ilustre personagem, é o de bebermos os seus ensinamentos, uma vez que é detentor único da moral em Portugal. Falo obviamente, como já adivinharam de Dias da Cunha. Absolutamente execrável a entrevista que deu esta semana à RTP –N. Fiquei com a certeza absoluta que o homem é um perfeito imbecil. Mas como este não é um post sobre futebol, vem esta constatação a propósito do perfil deste energúmeno. Na realidade, o atraso do nosso país deve-se a muitos Dias da Cunha espalhados pelo tecido empresarial português. Empresários sem visão estratégica, sem perceberem os problemas do mercado, sem soluções para criarem uma empresa competitiva, atirando para cima dos outros as culpas pelos seus constantes e reiterados fracassos. Do lado dos trabalhadores existem também muitas personagens destas, especialmente nessas estruturas pré-históricas e completamente obsoletas que dão pelo nome de Sindicatos, que preferem a contestação social, com greves, marchas ou outra qualquer forma de reivindicação sem qualquer sentido nem objectivo, que não seja deixar o país pior do que já está, em vez de contribuírem de forma válida para o crescimento das empresas e consequentemente do bem estar dos seus associados.Enfim Portugal no seu melhor e no seu pior. Esperemos que existam cada vez mais exemplos como a Praia da Aguda e a “Douro Azul” e cada vez menos (ir)responsáveis como Dia da Cunha.